Sigilo em testes de medicamentos pode fazer com que genéricos demorem 5 anos para chegar ao mercado
A chamada proteção regulatória do dossiê de testes (PRDT) protege novos produtos da concorrência por um tempo determinado
O atraso no desenvolvimento de medicamentos genéricos pode ser uma das consequências do sigilo aos testes de laboratório em medicamentos humanos. Os riscos e benefícios de uma eventual proteção da Anvisa no segmento farmacêutico foram apresentados à Comissão Comissão de Ciência e Tecnologia (CCT) por especialistas do setor nas últimas semanas. Atualmente, a regra vale apenas para uso de remédios veterinários e de agrotóxicos, entre outros itens do gênero.
A chamada proteção regulatória do dossiê de testes (PRDT) protege novos produtos da concorrência por um tempo determinado. Quando o fabricante envia informações clínicas à Anvisa para registrar o produto, elas também são usadas pelo órgão para comparar com as versões de outras empresas e assim autorizar também o produto genérico. Mas, segundo a Lei 10.603, de 2002, que não se aplica no caso de medicamentos, quando o resultado dos testes envolver “esforço considerável” e “tenham valor comercial enquanto não divulgadas”, a informação passa a ser sigilosa e cria barreiras para o registro dos genéricos.
Cinco anos
Os genéricos podem demorar cinco ou mais anos para chegar ao mercado caso o processo também seja aplicado nos medicamentos humanos, segundo o presidente-executivo da Associação dos Laboratórios Farmacêuticos Nacionais (Alanac), Henrique Tada. Ele deu a declaração em audiência pública na CCT realizada no dia 12/06 — a terceira do colegiado. Em sua estimativa, levaria cerca de 25 anos, em muitos casos, entre as pesquisas de um medicamento novo e sua comercialização por meio de genéricos.
— [A eventual PRDT nos medicamentos adia o] início da entrada no mercado desses medicamentos [genéricos], que são muito importantes para o abastecimento do SUS, mais anos pela frente aí: pode variar entre dois, três, cinco ou mais anos.
Os três debates foram presididos pelo senador Izalci Lucas (PL-DF) e tiveram participação dos senadores Astronauta Marcos Pontes (PL-SP) e Dr. Hiran (PP-RR).
Preços altos
A diferença dos preços entre os produtos originais e genéricos foi criticada pelo diretor executivo da Iniciativa Medicamentos para Doenças Negligenciadas (DNDi) na América Latina, Sergio Alejandro Sosa-Estani. Sem genéricos, a população fica sujeita ao valor único do fabricante original. Para Sosa-Estani, a PRDT “é uma política que apoia preços elevados dos medicamentos” por permitir o monopólio da fabricante do produto novo.
Em 10 de fevereiro, o Brasil completou 25 anos da implantação da política de medicamentos genéricos, por meio da Lei 9.787, de 1999. De acordo com o Conselho Federal de Farmácia (CFF), que fiscaliza o setor, a norma busca baratear os preços dos produtos. Por lei, os genéricos têm de ser ofertados a preços 35% abaixo dos produtos de marca (referência). Na prática, de acordo com o CFF, a diferença gira em torno de 67%, podendo chegar em alguns casos a 90%.
Monopólio
O monopólio também foi criticado pela especialista em propriedade intelectual da Associação Brasileira das Indústrias de Química Fina, Biotecnologia e suas Especialidades (Abifina) Ana Claudia Oliveira. Na primeira audiência da CCT (em 15 de maio), ela afirmou que o tema passou a ser discutido por farmecêuticas após o Supremo Tribunal Federal (STF) derrubar, em 2021, a norma que permitia prorrogar as patentes. Segundo ela, a PRDT nos remédios é uma estratégia para manter o tempo de monopólio sobre as vendas.
Segundo o senador Dr. Hiran, ainda não existe no Senado um projeto de lei sobre o assunto.
Direito à saúde
Para a representante do Conselho Nacional de Saúde (CNS) Laís Alves de Souza Bonilha, o interesse dos pacientes deve prevalecer sobre o das empresas. Ela afirmou que a medida não beneficiaria a indústria nacional e que atrasar o acesso da população aos genéricos fere a Constituição Federal.
— Não estamos defendendo aqui os interesses da indústria farmacêutica nacional quando defendemos a PRDT, estamos defendendo a indústria estrangeira [...]. Essa é uma questão ética. Nós não podemos tratar as pessoas como objetos, não podemos tratar o medicamento como uma camiseta a ser vendida. O envelhecimento da população foi graças às melhores qualidades de vida e às possibilidades de acesso aos medicamentos — argumentou.
Mais investimento
Mas na avaliação do presidente da Associação Brasileira da Propriedade Intelectual (ABPI), Gabriel Leonardos, a proteção aos novos produtos estimularia o investimento em inovação farmacêutica. Ele defendeu sigilo sobre os testes clínicos de cinco a dez anos, o mesmo que a lei estipula para produtos veterinários e agrotóxicos.
— Enquanto for possível que uma empresa simplesmente “pegue carona” e enriqueça sem causa às custas dos esforços das empresas inovadoras, estaremos dizendo ao mundo: não venham investir aqui. O nosso país quer estimular a ciência, a tecnologia e a inovação ou viver de copiar a criatividade em países mais avançados?
Na opinião do presidente-executivo da Associação da Indústria Farmacêutica de Pesquisa (Interfarma), Renato Porto, a PRDT seria vantajosa para o país, pois a ausência de concorrentes por um tempo maior incentiva o investimento em pesquisa. No debate do dia 22 de maio, Porto afirmou que as pesquisas de um medicamento costumam levar cerca de 12 anos e custar até R$ 1,3 bilhão.
Ele mencionou estudo patrocinado pela Interfarma e realizado pela Copenhagen Economics (empresa de consultoria dinamarquesa) segundo qual a PRDT estimula a realização de pesquisa, desenvolvimento e inovação (PD&I). O estudo foi alvo de divergência entre seis debatedores ao longo das três reuniões.
PRDT x Patente
Outro esclarecimento recorrente feito pelos convidados foi a diferença entre a proteção dos resultados de testes (PRDT) e a proteção da patente. Segundo Henrique Tada, a patente é uma proteção de 20 anos que veda a comercialização de uma inovação no mundo por outra empresa, mas não proíbe que concorrentes desenvolvam os genéricos. O que atrasaria esses estudos sobre os genéricos seria a PRDT, segundo ele.
Tada estimou que, normalmente, a comercialização dos genéricos já ocorre ao fim dos 20 anos da patente, pois os estudos laboratoriais e registro na Anvisa dessas versões mais baratas já ocorrerem antes desse prazo. Mas, caso a PRDT seja aplicável aos remédios, em muitos casos os estudos só se iniciariam após o fim da patente, em razão da sobreposição de prazos entre as duas formas de proteção. Com o atraso do desenvolvimento dos genéricos, também haveria atraso na comercialização.